Monday 7 March 2016

Habitando na Metáfora do Tempo: Três Contos de Irene Marques


O músico da montanha


Sentado em cima de uma parte da mesa que era quase rasa e que constituía o pico agreste e agudo da montanha de Almores, este músico era o regalo, senão o medo, o medo do que não se sabe ao certo, de quase todos os habitantes do local e suas vastas redondezas. Onde quer que estivessem, as pessoas não podiam ficar alheias à música daquele tocador e à aura que esta trazia até onde quer que se encontrassem – longe ou perto do local do acontecido. Como se o vento, ou o que nele existe que permite a viagem do som, fosse amante de todo o mundo e quisesse pois que todos ouvissem em cava profundeza, a música deste encantado músico, místico peregrino da montanha.

O tocador era um homem estranho, singularíssimo, sem nome que se soubesse, sem origem desvendada, de cabelos compridos, tão compridos que se estendiam por cima da mesa e do cume de toda a montanha, já descendo pelas várias encostas da mesma como cabras peludas a dominarem o reino das ervas apetitosas que naqueles sítios sempre cresciam. Tinha vindo há sete anos atrás quando se deu aquela desgraça que foi a morte prematura dos pardais do Ti Feijó, que cantavam como nenhum pássaro sabia fazer, e das nove galinhas da Bitalina Bocage que acordavam sempre antes dos galos e antes da lua ser comida pelo sol, anunciando em inigualável  singeleza, o princípio do mundo. Isto diziam as pessoas que ali viviam mas o Ti Mangueiro da Poça, homem de idade vastíssima e olhares que sabiam ver coisas que a outros passavam despercebidas, dizia com afincada certeza que o músico era presença eterna, imutável, que ali sempre estivera em cima da montanha a mandar chuva áurea e bela cá para baixo para que os habitantes do vale se enchessem de alma e soubessem como se fazem as verdadeiras festas de fim de ano: “Festejando a eternidade do tempo” dizia ele. 

Nos dias em que chovia uma chuva miudinha ou havia aquele nevoeiro às vezes espesso às vezes leve, a pairar na montanha, na encosta e no vale que era a aldeia de Almores, a música tocada pelo secreto pianista descia em câmara lenta como que em remoinhos de dança contente e quase erótica e vinha plantar-se aos corpos de todos os habitantes, de todas as plantas, árvores, pedras e animais que ali havia entrando mesmo nas águas fartas e de corrente veloz que aí existiam em abundância pois que Almores era de facto uma terra inundada de nascentes como se o mar não estivesse longe da sua superfície, ou em grande audácia de amor, não permitisse que a sede arreliasse nunca a vida alta daquele local. A música abraçava-se pois a tudo e a todos e Almores ficava completamente imerso no silêncio da carne, aquele silêncio que vem quando os corpos e a matéria se calam para ouvirem mais profundamente a circular canção que ecoa em perfeita repercussão no tempo, dentro deles, no local oco e côncavo que habita dentro de tudo quanto vida tem, humana ou de outra importante natureza. 

Nos dias em que chovia com apaixonada e violentíssima agressão outra coisa ainda mais impressionante acontecia. Os meninos e as meninas daquela terra que tinham menos de oito anos ficavam em estado completamente impossível de aturar: traquinas e barulhentos que não havia quem nem como lhes cortar a dança: nem pesado bofetão de pai nem levezinho acarinhamento de mãe. Era como se estivessem possuídos por uma vida mais vasta e mais cheia do que aquela que habitava em todas as pessoas de Almores - endiabrados garotos e garotas que entravam em algazarra constante e de tal intensidade que a uma certa altura já não se sabia se era a música vinda da montanha que se ouvia, se a chuva pesada que batia nas vidraças e no telhado de zinco, se os sons de alto calibre emitidos pelos meninos e meninas que ainda não tinham chegado ao oitavo aniversário da sua vida, ou se tudo ao mesmo tempo envolvido em remoinho altamente interligado. Depois desta algazarra outra coisa mais acontecia: os ditos garotos e garotas punham-se eles mesmos a cantar, mas era um cantar que não parecia sair-lhes da boca mas sim de toda a extensão dos seus corpos, poros e poros abertos a emitirem sons que se assemelhavam àqueles que saíam do órgão do pianista plantado no cimo da montanha, na mesa plana, bem pertinho do picado cume.

Era como se estes meninos e meninas fossem eles próprios flautas e cornetas, assobios e leves piares de passarinhos, tambores e violinos, máquinas poderosas de vasta experiência musical que sabiam como criar a música eterna do mundo que era composta por instrumentos da mais variada ordem. Os pais e as mães destes meninos e meninas quando chegados a esta altura do acontecido deixavam de perceber a razão da sua zanga, a razão do seu incómodo anterior que os levara alguns momentos antes a pesados bofetões e a levezinhos acarinhamentos. Pais e mães ficavam apáticos como se não sentissem nem pensassem e simplesmente ouvissem aquilo que saía para fora dos seus meninos, das suas meninas, em dilatada corrente areosa de música impossível. Estavam despossuídos de um querer individual e eram meros espectadores da peça musical por seus filhos engendrada como que por milagre de um Deus até ali desconhecido, um acaso abismal que lhes trazia aquilo que nunca conscientemente pensavam poder existir, aquilo que nunca pensaram poder fazer-lhes falta. O Ti Mangueiro da Poça ficava de olhos fechados a ouvir esta cena, imóvel, em estado quase morto, sem uma só parte de si deixar transparecer sinal de vida, e depois quando o silêncio voltava emitia o seguinte juízo: “Só um pianista transcendental pode ensinar-nos a ouvir a verdadeira música da vida. Só o pianista da montanha pode trazer-nos os instrumentos que nos faltavam. Ele, esse homem entre o sim e o não, pleno cidadão do cá e do lá.”

Quando o sol brilhava e nem ponta de nevoeiro, chuva miudinha ou forte interrompia a passagem do som do pianista da montanha, tudo era de uma aparência magnética e rebrilhante. Os habitantes de Almores punham-se à janela ou plantados à porta a examinarem os raios de sol desde o momento em que este aparecia até ao momento derradeiro da sua despedida. Ali ficavam imutáveis no tempo a captarem a luz que o astro lhes trazia nas várias modalidades que o passar do dia permitia. Nessa profunda e imóvel meditação conseguiam ver com a nitidez de peritas em notas musicais a iluminação trans-incendiária criada pelo músico da montanha, iluminação esta trazida em cada reflexo que o sol lhes enviava como se o sol e o músico e a música do músico fossem todos a mesma coisa, a mesma unidade luminar, unidade esta que lhes entrava em cheias ondas compassadas nos seus seres lembrando-lhes em pacífica e amorosa mensagem a Razão, sendo esta que tudo e todos eram parte da mesma luz, do mesmo sol, do mesmo piano, da mesma montanha, do mesmo pianista. E depois disso havia ainda outra junção, uma confluência de água, de terra, de rios, de gente, de animais, de plantas, uma que deixava na consciência a única consciência possível – aquela de quem existe sem em si existir separadamente. Ou “Aquela dos que inconscientes são a consciência do pulsar da terra” como dizia o Ti Mangueiro da Poça nas suas obervações intercaladas sempre de cavada lucidez.

Mas o preferido banquete acontecia quando a neve vinha imaculada e branca visitar Almores e arredores – tal virgem em estado de sensual adorno. Nessas ocasiões tudo e todos perdiam o que de facto nunca tiveram. Ao levantarem-se do silêncio nocturno que os envolvera olhavam para a circundante abertura que os enleava e pasmados ficavam horas e horas a fio esquecidos do fio que os tecia, ficavam em morna meditação a olhar para o nada branco que diante deles se deparava, uma manta, uma cama, larga para a primaz noite nupcial de príncipe e princesa, um sonho que nunca em seus mais belos e descontraídos sonos, aqueles limpos de escamas e luzidios como pele de peixe espada, tinham conseguido vislumbrar. E só depois de muito tempo, quando o sol batia em cima da neve cegando os que ainda viam, acordavam do devaneio orgásmico em que tinham estado enterrados. Acordavam e de repente davam-se conta que não eram as mesmas pessoas que tinham ido deitar-se eternidades antes logo depois do crepúsculo lusco-fusco. Lembravam-se vagamente de quem tinham sido mas como se essa lembrança fosse a lembrança que se tem de uma pessoa que conhecemos há muito tempo atrás, noutro país, falante de outra língua e com quem passámos apenas um dia ou dois em vagas e distraídas conversações, essas que se têm quando somos forçados ao diálogo com estranhos, que por um ou outro motivo, se nos deparam no nosso caminho. E depois de acordarem desse estado induzido pela neve começavam a ouvir, como antes nunca puderam ter ouvido, a música do pianista da montanha.

Ouviam-na em medalhas prateadas engolfadas em anéis de ouro brando, aquele que marca sem deixar marcas à vista, amando devagarinho como só os maduros da vida sabem fazê-lo. Ouviam ainda o barulho dos riachos e das fontes a borbulhar em calma mansidão debaixo da neve branca e segura de si mesma, tão segura aliás que nem precisara sequer de mudar o estado aquático das coisas que aquáticas devem permanecer para que não se morra de sede e se tenha acesso à visão dos vários corpos que compõem o nosso caldo primordial. Ouviam com nitidez nunca antes notada o barulho dos pássaros como se estes só agora e depois de uma eterna mudez, se lembrassem de cantar, amantes perplexos do senhor ou da virgem Maria que ali estava agora estendida em vasto e perfeito manto cobrindo a verdura, a secura e a aridez que pode ser por vezes a terra em que caminhamos. Ouviam o barulho da sua respiração, baixo e quase surdo, que lhes falava da vida que corria dentro deles. Apalpavam os seios, as partes íntimas, o côncavo de debaixo dos braços, o espaço entre os dedos dos pés e das mãos e certificavam-se que de facto existiam e que eram corpos feitos de compacta matéria que por vezes pedia mais do que eles e elas lhe podiam oferecer na pobreza do seu desleixado e distraído dia a dia preocupado com o angariar do pão. Ouviam as crianças de todas as idades a jogarem na fofura da neve perdendo-se na húmida frescura que daí imana em luminosidade magnífica, magnética, sorridente senhora do cabo do mundo. Ouviam tudo como nunca antes lhes acontecera. Sentiam-se mais vivos e conscientes. Mais inteiros, mais pobres, mais ricos.

E nesses dias, nesses dias de singela beleza e completo existir o Ti Mangueiro da Poça ficava em estado de grande exaltação, jubilado enfim, professor ancião. Ficava de joelhos prostrados na neve fresca, fria, fofa que exalava um ligeiro cheiro a sal como que vinda do lado do mar, e proclamava em voz alta para acordar aqueles e aquelas que porventura ainda se encontrassem meios dormentes: “Ó senhor pianista da montanha, homem de cabelos mais longos que a treva do tempo, Deus dos deuses, música da música, hoje é o dia que sempre esperámos. Depois de hoje tudo será mais. Depois de hoje o tempo já vai ser tempo, alma ininterrompida. Tempo do tudo. Do sim e do não. Do cá e do lá. Ó senhor pianista da montanha. Músico das trevas do tempo. Transgressor de batalhas intempéricas.”


A menina dos olhos azuis

No diferente rodar da roda apercebia-se algo
Algo de luminoso, o possível cambalear eterno
Aquele sabor a pêssego-morango, o célebre bege e fogo, em forma de moinho circular
Ou o vazio e apetitoso pálido incandescente

Primeiro não se notava nada, nada mesmo
E só os atentos da vida, esmerados pacientes conseguiam depois de muito tempo
Vislumbrar a agulha central onde tudo ardia

A menina de olhos azuis cada vez que via a roda apercebia-se logo de algo de vasta importância
Cada vez que a mãe a levava ao lugar onde tudo se passava a menina já sabia o que iria acontecer
E mesmo da primeira vez, ainda sem experiência em que assentar-se ela pressentia já o peso do grande facto

A menina de olhos azuis punha-se a olhar fixamente para o rodar da roda
Aquela máquina mitológica onde dançava a música das águias da vida e onde cambaleavam os puros e para sempre inocentes
Punha-se no seu mirar atento e depois de pouco tempo, um quase nada, apercebia o primeiro encantamento

Era como se estivesse a presenciar a fabricação do primeiro gelo 
Sentindo mover-se dentro de si a frescura de uma aventura fabulosa
Refrescante rebuçado de encantos tamanhos para bocas de noviços
Tal qual sentiu o famoso Coronel Aureliano quando o pai o levou ao circo pela primeira vez, experiência memorável descrita naquele tratado sublime da existência humana
Que não é mágico nem realista, simplesmente é

A menina de olhos azuis ficava tão tocada que nesse estado de convulsão não se podia conter em si mesma tão grande se tinha tornado
E então via-se nos seus olhos cor de abismo limpo, aquela clareza íntegra
Que fazia chorar os mais rígidos, aqueles adormecidos na crispante vileza da vida,
Tal roda frígida que não pára de corroer a medula dos nossos ossos, essa preciosa manteiga gelatinosa que é a derradeira responsável pela altura humana, cujo antecipado apodrecimento foi o vil benévolo autor pela solene viagem, ainda que prematura, da querida Isabel 

Mas a menina de olhos azuis atingia capacidades atmosféricas e o abismo sereno que habitava nas órbitas das suas meninas era de um carácter profundamente tocante
E então os frios da vida não podiam resistir mais
Deitavam-se na relva do chão e olhavam a mudez do abismo celestial
Que tinha nascido do olhar atento da menina de olhos azuis
Tinha nascido porque a sua mãe, senhora de sagaz inteligência tinha percebido que a vida da sua menina não podia, não devia ser como a dela, seco sibilar de plantas mortas onde a vento já quase não parava para embalar os necessitados

A vida da sua menina de olhos azuis tinha que ser
E foi nessa descoberta materna de grave importância que a mãe chegou à grande conclusão,
Levar a sua filha à roda tocante da vida
Para que ela, quando crescesse e mulher de dar vida se tornasse, pudesse sentir a saudade do sublime, recordar-se tal como o velho Aureliano, que a morte e o sangue nem sempre são os comandantes da vida e que a memória, aquela vasta saudade do eterno pode ser também a derradeira sibila, a cantar-nos os louvores deste moinho, mesmo quando a fisga feroz do tiro morteiro nos entra plena na flecha da vida

Nesse culminar fatal de cem anos de solidão podemos então sentir o vácuo limpo e aberto
Tal qual aquele que a menina de olhos azuis exibia no centro do seu eterno

A menina de olhos azuis
No centro do seu eterno

A seguida

A seguida do comboio é longa e vasta
Pelas linhas da minha vida fora
Eu planto-me à janela e vejo
Chorando o amor que os meus olhos acariciam
De vez em quando esqueço-me da minha dor e começo a gritar de alegria

Os outros passageiros que aí viajam olham-me com olhares intrigados
Pensando que talvez se trate de uma perdida que ainda não sabe as cores dos estacões
Estranha viajante que segue desapercebida da grande cidade, transbordando fora da capital, a linda Lisboa, a anciã menina e moça
Mas eu nem ligo aos seus devaneios curtos e sigo rebelde
Reclamando que a vida existe é no meio das linhas vazias
Em aldeias sentadas em cima do cume da montanha, namorando vagamente o que o vazio limpo lhes deixa meditar em perfeito condescender 
Aldeias no pique da alma, em serrana veemência, por onde ainda se descobrem aqueles eternos guardadores de rebanhos cuidando dos cordeiros mansos e dos cabritinhos acabados de entrar na tristeza deste mundo, palavra depois de palavra, pastores ideais, que saudades me dão 

Depois, um, talvez mais caridoso e sentindo culpa daqueles que pôde mas não salvou estende-me a mão tentando puxar-me fora da janela e eu alheia mas não inconsciente
Ignoro-o de propósito fazendo-me de cabra-cega
Continuo pela viagem fora de mim sem ligar a esses alheios devaneios inebriada que estou pela saudade do que vejo fora da janela que aquele comboio passageiro me deixa aperceber

De vez em quando, quando o espectáculo que vejo por fora da janela de vidro
é demais para os meus olhos não aguento e outra vez expurgo o meu grito interior
Deixando os outros passantes da vida, viajantes do meu comboio, ao máximo sobressaltados, eles e elas que dormiam na languidez do medo, do aborrecimento, tal como eu em vidas anteriores, antecedentes àquele dia 
E então da cabine principal o revisor sai apressado e dirige-se ao meu assento murmurando: “Senhora acalme-se, acalme-se. Quer que chame um médico?”
E eu ainda no meu êxtase violento de noviça agora em núpcias de primeiro orgasmo returco: “O médico de que precisava encontrei-o hoje neste comboio que o senhor ordena.”

Ele em cara de deslumbrado entendedor não sabe o que dizer e recolhe-se tímido para a cabine de onde tinha vindo para salvar a princesa em devaneios que eram tão necessários como o pagar do bilhete, aquele que comprei com notas novas de Euros europeus na estação do meu país

Aquela viagem
Aquele comboio 
Em seguida


Textos publicados em Habitando na metáfora do tempo: crónicas desejadas. Prefaced by Professor Pires Laranjeira. Porto: Edium Editores, 2009.