Friday 23 October 2015

"Um pontinho entre os olhos" de Jacinto Lucas Pires


     Estava sozinha na cidade e a verdade é que não sabia bem o que fazer. Estudava, claro, e à tarde passeava. Com o pretexto de comprar uma caneta ou um caderno ou uma pasta de dentes, dava voltas e voltas pelas ruas, a pé e de autocarro, como uma turista inglesa, e se fazia sol comprava um gelado na baixa. O pretexto servia só para mim pois não tinha de dar explicações a ninguém (os meus pais estavam lá longe, na terra, e eu vivia sozinha, numa residência de estudantes que era chamada a Casa e só aceitava meninas mas não impunha condições especiais, a não ser não podermos levar rapazes para os quartos), eu é que não sei porquê precisava sempre de uma desculpa para me permitir não fazer nada. Tinha três amigas na Casa, a Maria, que partilhava o quarto comigo (os quartos eram de duas), e a Andreia e a Guida, que dormiam no quarto ao lado. As três estudavam farmácia, só eu é que era de filosofia. Na faculdade, pelo contrário, não conhecia quase ninguém. Cumprimentava duas ou três pessoas e pouco mais, porque nunca ficava no bar com eles, a fazer tempo e a beber cafés, mal acabavam as aulas ia-me embora. Só mais ou menos a partir de meio do ano é que um rapaz meteu conversa comigo nas escadas e começámos a ser amigos. Chamava-se José Carlos e também tinha vindo de fora. Era magro e com umas manchas vermelhas na cara e muito tímido, embora gostasse de conversar. Não era bonito e cheirava como as pessoas do campo, mas tinha um fraquinho por mim (os olhos brilhavam quando me via de manhã pela primeira vez, à entrada da sala de aula) e de qualquer forma também não era um horror completo. Tinha um sorriso feliz, com os dentes direitinhos, que é mais do que muita gente pode dizer. E depois tratava-me com uma simpatia especial, como se eu fosse mais velha que ele ou ele fosse meu subordinado ou algo assim parecido, e eu gostava disso. Falava muito e eu sentia-me bem a ouvi-lo, porque podia pôr-me a imaginar o que quisesse sem ter que fazer propriamente nada. Quer dizer, estar a conversar com ele já era fazer qualquer coisa, estar a conversar com ele já era desculpa suficiente para eu pensar na morte da bezerra à vontade. E ele tinha sempre um assunto, a propósito de uma coisa qualquer lembrava-se sempre de algo muito interessante, e acalmava-me ouvi-lo, mesmo se não o ouvia com grande atenção, ou talvez por isso. Pensava que gostaria de comprar um vestido fininho sem ombros nem costas, só com os fios das alças, ou que um dia destes em que estivesse sol haveria de faltar às aulas para ir à praia, mesmo se a Maria, a Andreia e a Guida não quisessem vir comigo, ou que ia juntar dinheiro e nas férias, em vez de regressar à terra, faria uma viagem a sério, a um país qualquer bonito e muito longe daqui, não sei, punha-me a pensar coisas assim, sem importância, coisas no ar, enquanto o José Carlos ia falando de um professor ou de uma curiosidade que ele tinha achado não sei onde, num livro sobre não sei o quê. Era sempre muito simpático, e se por acaso eu perdia o fio à meada e ele dava conta (porque às vezes, no meio do seu entusiasmo, perguntava-me se eu estava a ver, estás a ver?, e eu acordava de repente e dizia hã?) não ficava aborrecido nem nada e repetia tudo outra vez, e outra vez com o mesmo entusiasmo, o que era realmente espantoso. A Maria, a Andreia e a Guida, que o tinham visto duas ou três vezes, sempre um pouco de raspão, à entrada da Casa, referiam-se a ele, para me provocar, como o “teu namoradinho”. Eu dizia-lhes que não era verdade, mas depois não dizia mais nada até que elas se fartavam do assunto e se calavam. 
     Uma vez por semana recebia uma carta da minha mãe a dizer como lhe doíam as pernas ou que o meu pai estava a ficar velho porque agora resmungava para dentro e não se entendia nada ou que os vizinhos já tinham feito dois furos no terreno deles e em nenhum dos dois havia água, o que era incrível porque, mesmo ao lado, nós tínhamos um furito nem sequer muito fundo que dava água que chegava e sobrava há mais de dez anos, se eu já tinha visto a nossa sorte, e no fim das cartas despedia-se sempre da mesma maneira, muitas saudades para o meu bebé, da tua querida mãezinha, e aquilo irritava-me como tudo e então eu esperava que a Maria saísse do quarto e queimava as folhas. Queimava-as porque assim tinha a certeza que ela não ia ao cesto dos papéis buscar os bocadinhos todos para depois, junto com as duas do quarto ao lado, gozar nas minhas costas com os erros ortográficos da minha mãe e com aquela coisa horrível do “bebé” e da “mãezinha”. Às vezes, nas cartas, a minha mãe acrescentava que o meu pai também me mandava um beijinho, mas nem sempre, muitas vezes esquecia-se. Ao telefone falávamos pouco e era sempre a mesma conversa. A minha mãe gritava do outro lado da linha e eu dizia-lhe que não era preciso gritar, e para que ela não ficasse magoada dizia em tom de graça que não era como no campo em que quanto mais longe estamos mais alto precisamos de falar, e ela dizia que sim, que já sabia, mas continuava a falar aos berros, e eu ficava cheia de vergonha, porque ela ligava-me para o telefone comum da Casa e se alguém passasse ali perto ouviria de certeza a voz dela gritada no auscultador, e então eu acabava rapidamente com a conversa, dizendo que tinha de estudar ou que eles já estavam a gastar muito dinheiro, e no fim era o meu pai a falar, e o que ele me perguntava era sempre a mesma coisa, como é que estava o tempo na cidade. Respondia-lhe, está sol, está chuva, está assim-assim, e depois desligávamos, e eu desligava muito rápido com medo que ele ainda fosse passar o telefone à minha mãe e recomeçasse a gritaria.
     Estava sozinha na cidade e a verdade é que não sabia bem o que fazer, e por isso é que ia agora ali, naquele autocarro, a caminho de responder a um anúncio de jornal que dizia homem de setenta e cinco anos procura rapariga estudante educada e que saiba jogar pingue-pongue para lhe fazer companhia. Na altura em que o autocarro começou a travar ainda pensei não vou, mas depois parámos mesmo e eu levantei-me e não pensei mais. 
     O prédio ficava num bairro antigo, toquei à campainha. Ninguém falou, mas a porta abriu-se logo. Era um quinto andar sem elevador. Subi as escadas, e enquanto ia subindo pensava como é que um homem de setenta e cinco anos conseguia subir aquilo. Ao chegar lá acima parei de pensar e quando ia tocar na campainha um homem abriu-me a porta e disse venha. Ri-me, um riso nervoso que me envergonhou, e fui. Só depois de entrar e fechar a porta é que disse boa tarde. Mas o homem já seguia por um longo corredor e não respondeu. Fui atrás dele com medo porque o corredor estava escuro e eu não via bem onde punha os pés e parecia que a minha cara podia a qualquer momento chocar com uma coisa que estivesse no escuro, escondida, e eu ia atrás não do homem velho que me tinha dito venha, mas do som dos passos dele. Eram passos largos (o homem tinha desaparecido no escuro num abrir e fechar de olhos) e pelo som os pés assentavam no chão todos de uma vez. Virei à esquerda e entrei numa sala com paredes azuis e livros, ao fundo o homem já estava sentado e olhava para mim. Era um homem velho e moreno, com o pouco cabelo todo branco e puxado para trás e os olhos castanhos.  Estava com uma camisa de manga curta, o que o tornava mais novo, os braços magros mas ainda fortes. Um homem magro com um sorriso forte. Disse para eu me sentar, para estar à vontade. Depois perguntou-me o que é que eu fazia. Disse-lhe que estudava filosofia, e ele então disse que isso era muito interessante embora a verdade fosse que a filosofia não servia para nada de nada, aprendia-se mais sobre a vida numa sala-de-jogos ou num navio ou numa cozinha de restaurante ou até na rua do que nos livros dos grandes pensadores. Disse que os pensamentos dos grandes pensadores eram interessantes porque podiam divertir-nos a cabeça e pô-la a funcionar com novas palavras e frases esquisitas e saborosas mas mais nada, e ao dizer saborosas ocorreu-lhe uma imagem, que os pensamentos dos grandes pensadores eram como caça, como comer caça, não é que a carne da caça seja melhor que a carne normal que se vende nos talhos, normalmente até é pior, mais dura e com chumbos que podem estragar-nos os dentes, mas há um charme extra naquela carne que foi caçada para nós por alguém e isso torna-a mais saborosa. E depois disto tudo o homem disse não sei, não sei. Eu estava sentada, quieta, e pensava que o homem não tinha ar de quem precisava de companhia, parecia um homem feito para estar só, assim tão magro e forte, e imaginei-o a subir as escadas com passos largos. O homem olhou-me e disse chamo-me Paulo. Eu repeti, Paulo, e ele disse sim, e depois eu disse como é que me chamava e ele perguntou se me podia tratar por Maria e eu também disse sim. Então ele levantou-se e foi-me mostrar a sala do pingue-pongue, onde havia um grande lustre cheio de gotas de cristal e lâmpadas e duas janelas sem cortinas que davam para o céu e para as antenas dos telhados mas nenhuma mesa de pingue-pongue. O homem explicou-me que a mesa estava desmontada na despensa, mas que amanhã tratávamos disso. Disse que quando não estava a jogar preferia a sala assim, vazia e com espaço para se andar de um lado para o outro, andar é um segredo bom, é a melhor maneira de não nos cansarmos, andando vemos coisas novas, ficar parado é terrível, mesmo dentro de uma sala não muito grande é preferível andar a ficar parado. E nessa altura, enquanto ele dizia que óptimo que era andar, estávamos os dois parados a olhar pela janela, eu olhava de vez em quando para ele e ele para mim mas os nossos movimentos eram desencontrados, eu olhava para ele no começo das frases e depois virava-me para a frente, para as antenas, e ele olhava primeiro para as antenas e só no fim das frases é que se virava para mim, eu sentia-o pelo canto do olho mas fingia que não, fingia que as antenas eram muito interessantes e concentrava-me numa em especial até que ele começasse uma outra ideia. Depois ele disse pingue-pongue e eu disse o quê? e ele disse nada, e ficámos calados a olhar para o céu e para os telhados cheios de antenas. Estava calor. No prédio em frente uma pomba catava bichinhos nas asas e eu tinha os lábios secos e apetecia-me um copo de água. O homem não havia maneira de quebrar o silêncio. Pensei que talvez fosse bom eu dizer qualquer coisa, mostrar-lhe que também sabia falar sozinha, sem a ajuda de uma pergunta dele ou de um comentário qualquer sobre filosofia ou como era maravilhoso andar (mesmo numa sala não muito grande como aquela), mas não me ocorria nenhuma ideia, e agora só queria sair dali, ir depressa para a rua, apanhar ar, fugir, que silêncio apertado naquele quinto andar de repente. 
     Combinámos o horário (duas horas por dia ao fim da tarde, e só nos dias úteis) e o dinheiro (mil escudos por hora, o que achei óptimo) e despedimo-nos, e quando à porta ouvi o homem dizer-me então até amanhã Maria é que percebi que não queria aquele nome, aquele nome que era o nome da minha amiga que estudava farmácia e dormia no meu quarto todas as noites, não queria, não queria, não queria mas já não havia nada a fazer, o homem já tinha fechado a porta e eu descia as escadas de olhos no chão, com cuidado para não cair, e dentro da minha cabeça só ouvia Maria Maria Maria, e quando cheguei à rua decidi que não estava para regressar de autocarro e apanhei um táxi.
     No dia seguinte, no meio de uma conversa sobre países distantes, contei ao José Carlos da minha nova ocupação, mas falei só de “uma pessoa idosa”, não disse que era um homem velho, magro, com um sorriso forte, não porque tivesse algum mal, era apenas que depois tinha de explicar tudo, a casa, as escadas, os livros, a mesa de pingue-pongue desmontada, as antenas, o nome falso, e não me apetecia nada, preferia ficar quieta a ouvi-lo (a mim, fascina-me a Austrália, aqueles desertos imensos, os desertos da Austrália, estás a ver? Hã?) enquanto pensava nas minhas coisas, de cabeça no ar, um dia hei-de comprar umas botas até ao joelho, um dia hei-de pintar o cabelo de vermelho, um dia hei-de tirar a carta de condução. Agora já não ficávamos pelos arredores da universidade, passeávamos por todo o lado, íamos até à baixa e ao castelo, e eu continuava a fazer de turista inglesa, muito calada a sorrir e a comer gelados, e ele cumpria muito compenetrado o seu papel de jovem filósofo e cavalheiro tímido (no entanto os olhos traíam-no, mal eu chegava parecia que ficavam maiores, mais vivos, e uma vez, no cinema, o braço dele tinha roçado no meu de propósito, muito devagar, pele com pele, porque estávamos os dois de manga curta, e no fim tínhamos saído da sala fingindo que não se tinha passado nada, a falar dos actores e do realizador e da fotografia, e na rua o José Carlos voltou ao tema dos países distantes e dos cangurus que o fascinavam porque tinham sacos na barriga para levar os filhos e andavam aos saltos e viviam na Austrália). Na Casa as três de farmácia estavam em época de exames e andavam muito nervosas. À noite voltaram a chatear-me com o “namoradinho”, mas eu já estava mais ou menos à espera e consegui não lhes responder nem uma vez, que era o que elas queriam, disse-lhes só pois é, pois é, e elas acabaram por se calar. Passavam muito tempo fechadas, as três, no quarto da Guida e da Andreia, e diziam que era para estudar, que estudavam melhor assim juntas fazendo perguntas umas às outras, mas do meu quarto eu ouvia-lhes os risinhos esganiçados e a música do leitor de cassetes. Estavam sempre a pôr uma canção brasileira que no refrão dizia qualquer coisa que eu não percebia e depois “mil e uma noites de amor com você”, e mal a canção acabava eu ouvia logo a Maria a pedir à Andreia para pôr para trás e passado um bocado lá vinha de novo aquilo das “mil e uma noites de amor com você”, e nessa altura acho que elas se punham aos saltos a dançar porque era um barulho infernal, parecia que as paredes tremiam todas, nem sei como é que ninguém lá de baixo se queixava, e eu só pensava quem me dera fugir daqui para fora. A Maria cada dia me enervava mais. Agora dizia que estava muito calor (e depois largava pequenos suspiros, ah, oh) e punha-se a dormir sem nenhuma roupa sob os lençóis. Eu não dizia nada, mas aquilo de ela estar ali tão perto de mim toda nua deixava-me desconfortável, desde que lhe tinham começado os calores eu precisava de horas para conseguir adormecer. Virava-me para o outro lado e punha-me a pensar noutras coisas, mas era muito difícil. Fazia-me nojo a ideia daquele corpo demasiado branco e mal feito, sem ancas e com os tornozelos grossos, sem nada por cima (porque, ainda para mais, ela dava voltas e voltas no sono e acabava sempre descoberta). Quando acordava ia logo para a casa-de-banho para me lavar. Esfregava-me com força, esfregava e esfregava, depois vestia-me rapidamente e sem barulho para não ter que a ver nem falar com ela (ela e as amiguinhas do quarto ao lado dormiam sempre até mais tarde) e desaparecia porta fora. Na cantina sentava-me a descansar daquele corropio. Pensava acordei agora e já estou cansada. Tomava o café com leite a olhar pela janela, nas traseiras havia uma ameixoeira muito bonita e muito pequena que parecia mudar de dia para dia e que, na minha cabeça, estava ali para me dar sorte.
     Ao fim da tarde, como combinado, fui ter com o homem velho, que agora já não era o homem velho, era o Paulo. Montámos a mesa na sala e jogámos pingue-ponge e ele ensinou-me a jogar à chinesa (pega-se na raquete como se fosse um objecto delicado e precioso e acerta-se na bola com um pequenino movimento de pulso, bruscamente), passado algum tempo já estava a conseguir safar-me mais ou menos e ele disse isso, isso. Não parecia nada que tinha setenta e cinco anos. Movia-se com uma agilidade surpreendente e na altura ocorreu-me que nisso havia qualquer coisa de oriental, mas talvez fosse só por estarmos a jogar à chinesa. Quando acabou o jogo bebemos água na cozinha, ele lembrava-se de quando tinha a minha idade e ia para o campo com uns tios e um primo. Contou-me que uma vez ele e o primo tinham ido caçar, ia anoitecendo mas eles ainda não tinham sequer uma lebre, de modo que para não chegarem a casa de mãos a abanar continuavam pelos campos, como se estivessem numa guerra, de olhos abertos e com a caçadeira nos braços e a falar baixinho (aos segredos, disse o homem que se chamava Paulo). Eu bebia mais água, para fazer qualquer coisa, e olhava para os pés dele, tinha uns sapatos castanhos, de atacadores, que pareciam de outra pessoa, não batiam certo com o pingue-pongue ou com as paredes azuis, e ele dizia-me que o primo se chamava Fernando e era mais novo que ele um ano e que era muito bonito, uma dessas pessoas mesmo bonitas, com olhos claros e um cabelo castanho sempre despenteado e quase sem barba e com uma boca de mulher e sobrancelhas compridas e quase sempre vestido com uma camisa branca, e nesse dia já não havia muita luz e ele, Paulo (o homem que se chamava Paulo), estava agachado a espreitar uma espécie de clareira, à espera sabe-se lá do quê, que um bicho qualquer aparecesse a correr por ali fora, e estava assim e ouviu um tiro e o primeiro pensamento que teve foi contra o primo, pensou merda ele já apanhou um, o sacana apanhou um antes de mim, e só depois é que se pôs a andar para ir ter com ele, que estava um pouco afastado, numa leira mais abaixo (leira, disse o homem que se chamava Paulo), e ao chegar lá o primo estava deitado no chão com a caçadeira atravessada sobre as pernas e a cara era só um buraco de sangue, só um buraco de sangue, e à volta estava tudo desorganizado em bocadinhos vermelhos, brancos, amarelados, verdes e de outras cores, tudo espalhado na terra, e Paulo sentiu então um choque no peito e aproximou-se do corpo mas não conseguiu tocar-lhe e fugiu, pôs-se a correr como um louco, e a coisa que estava no peito ia-lhe crescendo por dentro mais e mais e arranhava-lhe a garganta e os olhos e, quando se viu perante os tios, não lhe saía nenhuma palavra, ele queria dizer venham, aconteceu uma coisa terrível, e não conseguia, as palavras que dizia não tinham som, e os tios percebendo que tinha havido algo de grave perguntavam, assustados, o Fernando? onde está o Fernando?, mas o Paulo não conseguia falar, a coisa que lhe tinha nascido no peito crescera até à boca e ele sentia a falta de ar como um nó debaixo da língua, e então virou-se e começou a correr de volta à leira onde o primo estava deitado como uma coisa, olhava-se para aquele corpo deitado na terra e o que se sentia é que era impossível que antes ele pudesse levantar-se, agachar-se, falar aos segredos, era impossível, e os tios corriam atrás dele, a tia dizia ai meu deus e o tio não dizia nada, e quando já estavam perto tiveram um pressentimento os dois e pararam, a tia começou a andar mais devagar e depois o tio olhou para ela como uma criança (como uma criança que pergunta e agora?, disse o homem que se chamava Paulo) e pararam, e parecia que não iam avançar mais, mas de repente viram uma coisa no chão e correram para lá, e agora corriam com uma força terrível e nada os poderia parar, e a mãe foi a primeira, baixou-se e pôs a mão na cara do corpo, como se a mão pudesse negar o buraco de sangue que era aquela cara, e só ao sentir que a mão vinha cheia do sangue do filho é que a mãe viu a verdade e então gritou um grito muito agudo que calou os campos e os pássaros, e era como se lhe estivessem a cortar a garganta e ainda houvesse som, um som sem sentido, que dizia mirii guiii miguiii, e a mulher batia com os punhos fechados no peito e os olhos tinham-lhe entrado no rosto e estavam escuros, no fundo, muito abertos, virados para o céu, e o pai não se baixou, olhou o corpo um instante em silêncio e não olhou para a mãe e foi-se embora. Paulo disse foi-se embora e calou-se e eu bebi mais um copo de água e olhei para o relógio e disse já é tarde e fui-me embora. 
     No autocarro, sentada junto ao vidro, sozinha, era como se ainda estivesse a ouvir a história (na janela passavam casas, caras, pernas, letras, mas a história continuava), a voz do Paulo contando tudo com uma calma impressionante, e nessa noite fiquei cheia de medo e nem me lembrei que a parva da Maria estava nua sob os lençóis e adormeci logo, porque o medo era um medo bom que me fazia quente e enrolada, adormeci feliz, e tive um sonho em que eu e a minha cara estávamos numa floresta e éramos duas coisas diferentes. 
     O tempo passou (como uma coisa na janela), os dias iam crescendo e a ameixoeira pequena e bonita estava sempre a mudar. A minha mãe mandou-me uma carta em que me perguntava se eu já tinha namorado e quando é que ia casar e dizia que não era por nada mas que a minha prima, que era mais nova que eu dois anos, já se tinha casado (uma cerimónia maravilhosa) e já estava grávida, e que se eu demorasse muito daqui a uns anos nenhum homem me havia de querer, que agora as raparigas eram umas desavergonhadas e os homens tinham tudo o queriam, sem esforço, já não era como dantes, no tempo dela, etcétera, etcétera, e muitas saudades para o meu bebé, da tua querida mãezinha. Resumi a carta ao José Carlos e ele corou e mudou de assunto, pôs-se a falar de uma nova teoria de um americano sobre o universo, os buracos negros e o fim do mundo tal como o conhecemos (foi assim que ele disse, “o fim do mundo tal como o conhecemos”, e depois tirou uma remela do olho e fez um ar pensativo e triste). Cada dia me sentia mais próxima do Paulo e mais longe de tudo o resto.
     O Paulo dizia muitas coisas, dizia que era bom estar na rua numa tarde de sol e ouvir sair de uma janela uma canção que se conhece muito bem, uma canção de que se gosta de verdade, e dizia que era bom estar em casa num dia de chuva e abrir um livro e sentir a água a bater contra os vidros enquanto vai aparecendo, aos poucos, aos saltos, todo de uma vez, o rosto de quem fala, o nosso rosto. E dizia que o nosso corpo era onde nós estávamos completamente e por isso é que andar, subir escadas, descer escadas, movermo-nos na vida, era tão valioso, quanto mais andássemos mais seríamos, seríamos mais, não porque fôssemos acumulando coisas (como em italiano, que se “guarda” tudo o que se olha) mas porque, pelo contrário, é preciso ver uma coisa para a poder esquecer, só depois de vermos uma coisa é que ficamos de verdade livres dela, e só então podemos ir seguindo sempre mais inteiros, mais só nós, ele dizia isto e eu dizia-lhe para quem não gosta de filosofia não está mal, e ele esperava pelo meu sorriso e depois sorria também, e eu agora gostava quando ele me chamava Maria, eu trazia-lhe um copo de água e ele olhava-me nos olhos e dizia obrigado Maria, e era como se dissesse estás muito bonita Maria, ou qualquer coisa assim. Nunca lhe perguntara quem tinha sido a Maria, mas um dia no corredor, ao virar-me para trás, reparei, embora ele disfarçasse a coçar os olhos, que me olhava o corpo (o corpo é onde nós estamos completamente), e por isso no dia seguinte comprei um vestido fininho sem ombros nem costas e de noite, no meio de um silêncio, ele disse fica-te muito bem essa roupa, Maria fica-te muito bem essa roupa, e era como se estivesse a dizer gosto muito de ti. Depois veio o fim de semana e eu fui à terra, para alegria dos meus pais que me fizeram uma festa como se fosse o meu aniversário ou eu tivesse voltado de uma longa viagem pela Austrália, convidaram toda a família e todos os amigos e todos estavam muito contentes e eu também, e a certa altura alguém pôs a música que as três de farmácia gostavam, “mil e uma noites de amor com você”, e todos se puseram a dançar e eu também, ali podia fazer o que me apetecesse porque passado pouco tempo ia-me embora. Regressei na segunda e, ao fim da tarde, quando cheguei ao prédio antigo, havia uma ambulância parada e uma pequena multidão de vizinhos à porta. Perguntei a uma mulher o que é que tinha acontecido e ela disse foi o senhor do quinto andar. Parei. Os enfermeiros vinham a descer as escadas com uma maca. Disse para dentro Paulo Paulo Paulo. Estava um sol doido. As antenas no alto. As pombas. As palavras devagar. Na rua olhei para o chão, respirei fundo e decidi que, para que ele não desaparecesse para sempre, não o ia ver nunca mais, depois dei meia volta e entrei num táxi. 
     Nessa noite, no cinema, beijei o José Carlos pela primeira vez e, enquanto metia a minha língua na boca dele e me sentia toda dentro daquele cheiro a campo e à terra dos meus pais, pensei que era melhor assim, pensei ele é muito simpático e inteligente e tem dentes bonitos e trata-me como alguém especial, é melhor assim, e cheguei-me para trás e calei-me e ele disse-me amo-te e eu disse eu também. No dia seguinte estava sozinha na cantina a beber café com leite (estava sozinha na cidade e a verdade é que não sabia bem o que fazer) e a olhar pela janela, e nas traseiras a ameixoeira parecia-me escura e muito maior e eu sentia uma dor de cabeça toda concentrada num pontinho entre os olhos, e era como se tudo já estivesse resolvido, tudo, desde a noite em que no escuro os meus pais me tinham gerado, até ao dia em que algures eu haveria de morrer, tudo. A sala era grande e vazia. Poeiras a pairar na luz. Pensei no quinto andar sem elevador, na sala de pingue-pongue com o lustre apagado e as janelas sem cortinas. Pensei se a mesa estaria desmontada. Pensei em eu ser Maria. Depois não pensei em mais nada, levantei-me e fui dar uma volta.

Conto originalmente publicado na coletânea Abre para cá em 2000 pela editora Cotovia.
 



Biografia:
Jacinto Lucas Pires publicou vários livros – entre os quais Livro usado (viagem ao Japão, 2001), Perfeitos milagres (romance, 2007), Assobiar em público (contos, 2008) e O verdadeiro ator (romance, 2011). Escreve peças de teatro para diferentes grupos e encenadores – das quais podemos destacar: Sagrada família (2010, Culturgest/Viriato, enc. Catarina Requeijo), Exactamente Antunes (2011, TNSJ, enc. Cristina Carvalhal e Nuno Carinhas), Adalberto Silva Silva (2012, para IvoAlexandre) ou Interpretação (2014, Culturgest/Mundo Perfeito, para Tiago Rodrigues). Em Libretto (2014, MM/CCVF/Ninguém, co-autoria Alma Palacios) fez de escritor em palco. Realizou três curtas-metragens, Cinemaamor (1999), B.D. (2004) e Levantamento (2014), e está a finalizar a sua primeira longa-metragem. Foi-lhe atribuído em 2008, pela Universidade de Bari/ IC, o Prémio Europa – David Mourão-Ferreira. Faz parte, com Tomás Cunha Ferreira, da banda Os Quais O seu último romance, O verdadeiro ator, ganhou o Grande Prémio de Literatura DST 2013. Escreve no blogue O que eu gosto de bombas de gasolina.


O escritor Jacinto Lucas Pires estará presente, no dia 24 de outubro de 2015, no International Festival of Authors, em Toronto, a convite da Coordenação do Ensino Português no Canadá/Camões, IP:

READING: 
Catozzella, Company, Kakuta, Pires and Reinhardt
Saturday, October 24, 2015 - 12:00 PM Brigantine Room
Participants: Giuseppe Catozella, Flavia Company, Mitsuyo Kakuta, Matt Lennox, Jessica Moore, Jacinto Lucas Pires, Eric Reinhardt

Around the World in 60 Minutes
Saturday, October 24, 2015 - 7:30 PM Brigantine Room
Canadian and International authors Giles Blunt, Paul Cleave, William Deverell, Mitsuyo Kakuta, Jacinto Lucas Pires, Benjamin Percy, Toni Sala and Francesc Serés present selections from their most recent works. Brian Francis acts as MC.

LECTURE:
Imagine the Truth 
University of Toronto
October 26th, 2015  
1pm – 2pm

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